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Quando a Justiça perde o freio, a liberdade perde o chão

Quando membros do Judiciário transformam suposições em sentenças, a democracia deixa de ser garantia — e passa a ser apenas um enfeite institucional.

Por Claudio Apolinario

Quando uma vigília vira ameaça, é a liberdade de todos que está em risco. O episódio envolvendo o ex-chefe do Executivo poderia ser apenas mais um capítulo da nossa política tumultuada — não fosse o fato de que, neste caso, os detalhes dizem mais sobre o país do que sobre o acusado.

Uma reunião pacífica, convocada como ato religioso, foi reinterpretada como ensaio de subversão. Não se sabe ao certo qual parte do encontro abalou tanto a República: se eram as orações, as mãos erguidas ou o risco incontrolável de alguém cantar um hino fora do tom. Mas, na lógica vigente, o sagrado virou suspeito e a devoção virou delito.

A justificativa apresentada na decisão não é apenas frágil; é um verdadeiro manual de criatividade jurídica. A vigília, segundo o despacho, representava “risco de tumulto”, “risco de constrangimento às diligências” e até “risco de fuga”. Mas risco de fuga simbólico?

Nada baseado em fatos, tudo ancorado em “suposto potencial”. A palavra “risco” surge com tanta insistência que o Brasil parece ter inaugurado um Direito Penal das Hipóteses, no qual crimes imaginários — elaborados por uma mente fértil que não reconhece limites de poder — valem mais do que ocorrências concretas. Isto, sim, é um risco.

Soma-se a isso o episódio da “caixa da tornozeleira”, interpretado de forma conveniente como sinal de fuga iminente — embora ninguém consiga explicar como essa fuga se materializaria, ou para onde.

A narrativa beira o cômico: seria plausível imaginar que uma senhorinha com trombose ou labirintite conduziria o suposto “fugitivo” rumo à área dos consulados, a 13 quilômetros dali, passando debaixo do nariz da Polícia Federal que vigiava a casa 24 horas por dia com 4 policiais fortemente armado e, ao olhar para trás, repetiria ao Estado a célebre frase: “perdeu, mané”?

Vale notar que a tentativa de abrir a tal “caixa da tornozeleira” não revela intenção de fuga, mas o comportamento de um homem exausto e humilhado. Depois de anos submetidos a um processo de tortura institucional que nada tem de justiça, é legítimo perguntar se ainda há algum cidadão capaz de preservar plena serenidade sob tamanha opressão. O espanto não está no desgaste — está na expectativa de que alguém suportaria tudo isso incólume.

Também não surpreende o fato de que os protagonistas do julgamento dispensam apresentações. Qualquer brasileiro que acompanha o noticiário sabe que, dentre os quatro votos da referida “Turma”, um é a própria vítima e também acusador, outro foi advogado pessoal do atual chefe do Executivo, e outro atribuiu publicamente ao acusado a figura de ser “o próprio diabo”. Fica claro como certas autoridades transformaram suas convicções e interesses pessoais em método de trabalho.

Ou seja, há quem conduza inquéritos com a dedicação de quem defende uma causa íntima, não um princípio constitucional. Nesse ambiente, a aparência de imparcialidade — fundamento mínimo de qualquer sistema de justiça — simplesmente deixou de existir.

Como advertiu um dos grandes juristas americanos, não há ameaça maior à democracia do que um juiz que esquece que o seu poder tem limites. Da mesma forma, Rui Barbosa alertou: “a pior ditadura é a ditadura da toga, pois contra ela não há a quem recorrer.” Quando a toga se considera intocável, a lei deixa de ser fronteira — e o Estado de Direito vira peça decorativa.

Há de se destacar que a deterioração não começou agora. Durante as eleições de 2022, opiniões banais foram proibidas; afirmações sobre associações históricas com ditadores foram censuradas; vídeos desapareceram; jornalistas foram intimados; perfis críticos foram desmonetizados; ordens judiciais secretas surgiram como rotina e se

multiplicaram como em um laboratório. Criou-se, na prática, uma espécie de “licença para interpretar intenções”, algo incompatível com qualquer democracia adulta.

E, claro, existe o inquérito que nunca termina — a investigação elástica, multifunção, que muda de forma conforme a necessidade política do dia, até se tornar um

guarda-chuva amplo o bastante para abrigar tudo que incomoda o sistema. Não é instrumento de apuração; é claramente instrumento de contenção.

É por isso que reduzir tudo ao destino de um homem é ingenuidade. O que está em jogo é o precedente — e precedentes, uma vez criados, não voltam

para a gaveta. Punir o líder é pedagógico. O alvo real é o cidadão comum. A coerção não se instala pelo grito; instala-se pelo medo. O cidadão passa a medir palavras, opiniões, gestos. Fala-se menos. Pensa-se duas vezes. O silêncio vira virtude cívica.

Regimes não nascem declarados; nascem subterrâneos. Nascem na soma de absurdos que vamos aceitando calados, um por vez.

E aqui está o ponto central que precisa ser sublinhado: nenhum sistema que

ultrapassa seus próprios limites permanece seletivo por muito tempo. Hoje atinge um

lado; amanhã, atinge todos. O poder sem freios não escolhe alvos permanentes escolhe conveniências momentâneas.

Enfim, quando uma vigília vira ameaça, o problema não é o acusado.

É a nação inteira — que, aos poucos, vai esquecendo o que significa ser livre.

*Claudio Apolinario é vereador em São José dos Campos e pastor na Igreja Bíblica Vida

Foto: Divulgação

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